quarta-feira, 24 de julho de 2013

Um Passo à Frente: Entrevista com Passo Torto





















Ao contrário da maioria dos grupos que tem um compositor galvanizando o processo criativo, vocês são quatro cabeças com ideias e com poéticas próprias. Como foi o processo para encontrar o ponto de convergência entre interesses diversos?

Romulo: Nós quatro temos personalidade artística estabelecida e diversa, possível de se perceber nos trabalhos de cada um. E não só nós do Passo Torto, mas também os outros integrantes dos outros projetos, dos quais fazemos parte. Acho que o que nos une e que movimenta o nosso trabalho, vem justamente do interesse e da admiração que temos um pelo outro. Mesmo em trabalhos solo, como o meu e o do Rodrigo, deixamos que as ideias de todos impregnem nossas composições. E vem daí a confusão que provocamos em muita gente, da nossa força de produção e da variedade de possibilidades de interpretação que nossos trabalhos permitem e que é para mim, sua grande força.

Quais as principais diferenças conceituais e sonoras entre o primeiro e o segundo disco?

Romulo: A mudança mais perceptível já vem estampada no título do disco, Passo Elétrico. Eletrificamos nosso som. Saem os violões e entram as guitarras do Kiko e Rodrigo e mesmo o baixo acústico do Cabral vem envenenado por pedais de efeito, assim como o cavaquinho do Rodrigo. Dessa eletrificação, nasceram novas possibilidades de composição, influenciando até mesmo as letras, que me parecem um pouco mais nervosas que as do primeiro disco.

Basta escutar Passo Elétrico para chegar à conclusão de que a canção está longe de morrer. O que de fato morreu e o que vive na canção brasileira contemporânea? O que vocês percebem hoje no Brasil nesse sentido?

Romulo: O que nos uniu no início, foi justamente nosso interesse por canção. Essa interpretação mal feita da frase do Chico Buarque é que já devia ter morrido. Entendo perfeitamente o que ele diz. Não foi a canção que morreu, foi a ideia de canção que construímos no século XX que passou a não fazer mais muito sentido neste século e que o Chico, na época de sua célebre entrevista, via mais sentido e novidade no que o rap vinha produzindo. Só acho que deveríamos atualizar essa percepção. Existe toda uma geração surgida nesse século que vem abrindo novos caminhos para a canção e que passa justamente pela experiência sonora e sua familiaridade com o processo de gravação. E que já influenciou o trabalho de nomes sagrados da nossa música como Caetano Veloso e Gal Costa. E influenciou até mesmo o rap, caso do Criolo, cujo disco foi produzido pelo Cabral juntamente com o Daniel Ganjaman.

"O que nos uniu no início, foi justamente nosso interesse por canção. Essa interpretação mal feita da frase do Chico Buarque é que já devia ter morrido."



A música do Passo Torto combina subversão da tradição da canção brasileira, inclinação ao ruído, sujeira, opacidade. É possível traçar linhas com o som que vocês ouvem e gostam? O que vocês gostam de escutar hoje, de ontem e de hoje?

Romulo: Mas é claro que sim! A gente é o que a gente ouve. A nossa particularidade é que a gente desconfia muito do que ouve, hahaha. É muito frequente em todos os nossos trabalhos, não acreditarmos fielmente na vocação de cada canção. Se ela se apresenta como uma bossa nova, sua harmonia será inteiramente destruída até não deixar vestígios da influência que a originou. Se a melodia aponta pra uma certa docilidade, a letra seguirá o caminho oposto, a fim de anular a vocação natural da canção. Dessa constante negação é que nasce o que tem de mais original em nossos trabalhos. Da negação nosso trabalho se afirma. Como compositor, é preciso muita maturidade e confiança para lidar com esse processo de desconstrução do seu trabalho.

O release deixa bem clara a tendência sonora exploratória, substituindo a clareza harmônica por texturas rítmicas, ruídos e sonoridades dramáticas. Por favor, falem um pouco a respeito dos arranjos.

Kiko: De alguma maneira o som do disco traduz o que sentimos pela cidade, a São Paulo de hoje está no disco com certeza. Os ruídos, a polifonia, o ritmo vertiginoso, beleza e feiura aparecendo paralelas. Mas isso não foi uma meta nossa, foi apenas uma consequência estética fruto da nossa própria vivência urbana. Acredito que se morássemos em uma cidade bonita, preservada e com qualidade de vida, a nossa música seria outra.


Em relação à poética, a diferença entre o primeiro disco e o Passo Elétrico me parece evidente. Antes, vocês cantavam a estranheza de São Paulo com um travo meio amargo, meio sombrio. Mas agora há uma irreverência, uma ironia sacana, ainda um clima sombrio, mas irônico…

Kiko: Engraçado, embora o primeiro trabalho fosse melancólico, ao mesmo tempo ele era mais solar, existia mais lirismo, era uma estranheza diurna da cidade. O Passo Elétrico é um diagnostico da cidade doente, não há espaço para esperança, ele canta a morte de SP. É nessa falta de esperança que surge o olhar mais malicioso e sarcástico. Uma espécie de "foda-se", como alguém que sorri pra própria morte, com desprezo.

O Passo Elétrico é um diagnostico da cidade doente, não há espaço para esperança, ele canta a morte de SP. (...) Uma espécie de "foda-se", como alguém que sorri pra própria morte, com desprezo.























Em relação ao trabalho de arte do Kiko, na capa, nas filipetas do Passo: a arte parece fazer parte do som, da ideia transmitida pelo som. Qual a intenção em manter a unidade visual do Passo?

Kiko: Sempre tivemos um compromisso estético, visual, nos preocupamos muito com isso. O Romulo tem muita vivência em artes plásticas. O Rodrigo adora cinema. Tentamos refletir isso nas capas e nos cartazes. Gostaríamos de ampliar mais essas experiências, com arte, vídeo, cinema.

Escutando “Rárárá” me toquei que um samba assim meio de vanguarda é algo que não se faz no Brasil desde algumas experiências de Paulinho da Viola, Candeia e Elton Medeiros (com Tom Zé). Pelo menos dois de vocês (Rodrigo e Romulo) surgiram dentro de um contexto de samba. Como percebem o conservadorismo que perdura hoje nesse gênero que é tipo uma instituição nacional?

Kiko: A idéia do “Rárára” era fazer uma estrutura bem tradicional, lírica. Tenho muita vivência no samba. Conheci o Rodrigo tocando com ele numa roda. A estranheza dessa música é a letra, extremamente sarcástica e violenta. Pensamos muito na maneira de como as pessoas tocam samba hoje. Enxergo um caminho evolutivo entre os grandes sambistas da história: Sinhô, Donga, Bide e Marçal, Ismael, Noel, o Cacique de Ramos e por aí vai. Hoje a juventude que se diz sambista pega esse bastão e joga lá pro passado novamente, como se engessando uma cultura fosse o melhor jeito de conservá-la. Acredito que a tradição vem da invenção e se adapta ao tempo atual para sobreviver. Nenhum jovem vai conseguir imitar o Candeia, nem o Bob Dylan, tem que ser honesto consigo mesmo e assumir o "hoje" no seu trabalho. Ao mesmo tempo falamos sobre samba porque temos vivência nesse gênero, temos muito respeito, embora pareça que não.

"Nenhum jovem vai conseguir imitar o Candeia, nem o Bob Dylan, tem que ser honesto consigo mesmo e assumir o "hoje" no seu trabalho."



Por favor, falem um pouco sobre como tem sido as apresentações de vocês, e se planejam algo para o Quintavant, nos próximos dias 28 e 29?

Romulo: As apresentações tem sido especialmente prazerosas pra nós todos. Passo Elétrico é um disco complexo de se fazer ao vivo, por conta da polifonia rítmica dos arranjos, das muitas mudanças de efeitos numa mesma música e da junção de todas essa vozes produzidas por cada instrumento, uma espécie de maquininha que só se realizam plenamente quando está em perfeito estado de funcionamento. E é o que tem acontecido nos últimos shows, a ponto de já nos sentirmos a vontade de mudar o funcionamento dessa máquina, levando os arranjos pra caminhos ainda mais inesperados. É o que pretendemos fazer no Rio de Janeiro e se nos divertirmos como nos últimos shows, tenho certeza que a diversão se espalhará pela platéia.

Depois do “passo torto” e do “passo elétrico”, pra onde está caminhando o interesse de vocês? Qual é o próximo passo?

Romulo: O próximo passo será sempre o passo adiante. O passo que mudará o passo anterior. Diferente, mas sempre torto!























Perguntas elaboradas por Mariana Mansur, Fred Coelho, Juliano Gomes e Bernardo Oliveira

Um comentário:

LFC disse...

Parabens por a entrevista.Muito interesante. Eu queria fazer uma tradução, em francês, para meu blog http://Berceuse.electrique.over-blog.com Eu posso ? (Sou francês, disculpa por o português errado).